Os 45 anos de “Tudo foi feito pelo sol”, dos Mutantes

 

O ano era 1973. O rock progressivo importado da Europa vinha caminhando paulatinamente no Brasil, até que chegou aos Mutantes. Depois de quatro discos do mais puro rock and roll e de conflitos internos na banda, Rita Lee a deixou e deu início à sua carreira solo, muito prolífica por sinal; não à toa ela é conhecida como “rainha do rock“. Pois bem. Era hora de gravar mais um disco, e os Mutantes pegaram pesado; o rebento era O A e o Z, que, supostamente pelo veto da Polysom, a gravadora do grupo à época, ficou engavetado e só foi em lançado em 1992.

Boatos correm de que O A e o Z foi gravado em meio a sessões de consumo maciço de ácido lisérgico (o LSD), o que, de certa forma, justificaria a sonoridade progressiva, complexa e atmosférica que marca o disco em sua íntegra. Outros boatos pegaram carona neste primeiro; de acordo com um deles, a Polysom teria vetado o lançamento do álbum justamente por esse contexto ilícito de consumo de drogas, até porque, se lembrarmos, o país estava mergulhado em uma ditadura instaurada em 1964, o que implicou a afirmação de uma caretice quase obrigatória; segundo outro boato, a saída de outro mutante, Arnaldo Baptista, teria ocorrido em razão de ele ter se envolvido tanto com as drogas que acabou chegando a um estado crítico de vício, o que o teria impedido de compor com qualidade e mesmo de raciocinar normalmente; outro fator que explicaria a saída de Baptista seria o término de seu casamento. Até então, eram dois integrantes a menos. Então, depois disso, por razões que não creio que valem a pena ser discutidas, saíram Dinho Leme e Liminha. Restou Sérgio Dias, o único “sobrevivente” da formação clássica dos Mutantes, que não estava disposto a abandonar a “banda”.

Chegaram reforços para compor o grupo: Rui Motta na bateria e percussão; Túlio Mourão assumiu piano, hammond, órgãos e mini-moog; e Antônio Pedro no baixo. Todos eles também complementavam os vocais da banda, cuja principal voz era Sérgio Dias. E veio 1974.

Os anos 70 foram o auge do rock progressivo não só no Brasil, mas no mundo. Inspirados nos grupos britânicos, diversas bandas surgiram no país, como Casa das Máquinas, O Terço, Terreno Baldio, Bacamarte e uma série de outras bandas que imprimiram uma complexidade musical inovadora em seus discos. Com os Mutantes não foi diferente. Em 1974, a banda gravou (em um só take)e lançou Tudo foi feito pelo sol, uma espécie de cisão entre o novo Mutantes e o velho. Os caminhos tomados pela banda em quase nada se assemelhavam pelo rock sessentista que a acompanhou até Mutantes e seus cometas no país do Baurets, de 1972. Neste álbum, pode-se notar com clareza a influência de um som rasgado e pungente feito pelos Rolling Stones e pelo Cream, com uma exaltação bem marcante do estilo que tocavam:

“Posso perder a minha mulher

Minha mãe

Desde que eu tenha o rock and roll

Em Tudo foi feito pelo sol, a “simplicidade” dos compassos quatro por quatro que regem o rock and roll e o hard rock se verifica apenas em uma faixa, “O contrário de nada é nada”, que é a mais curta do disco.

Sérgio Dias e o sitar
 

 O disco abre com “Deixe entrar um pouco d’água no quintal”, e com esta faixa já mostra a que veio. As marcações aceleradas de bateria abrem caminho para linhas de guitarra e baixo igualmente aceleradas, sucedidas por camadas ritmadas e marcantes de órgão, que se expandem em seguida para acordes bem nítidos. O trecho que precede a primeira estrofe da música apresenta claras influências de Emerson, Lake & Palmer e Triumvirat, bandas cujos instrumentos principais são órgãos, pianos e mellotrons, além dos sintetizadores moog, muito usados ao longo de Tudo foi feito pelo sol. Essa influência também pode ser notada em razão das marcações de bateria, muito precisas e quebradas em alguns momentos, à semelhança do que faz Carl Palmer, principalmente nos discos Tarkus, de 1971, e Pictures at an exhibition, do mesmo ano.

É possível verificar o uso do moog em faixas como “Pitágoras”, a instrumental e segunda faixa do disco, “Desanuviar” e “Eu só penso em te ajudar”, no trecho em que são ouvidas as experimentações sonoras e instrumentais posteriores às estrofes e aos refrões, que apresentam um approach mais rock and roll. Esta última, inclusive, é marcada por mudanças de ritmo e andamento em seu decorrer, algo que o Focus já havia feito em “Hocus pocus”, ao inserir camadas eruditas sobrepostas às linhas de hard rock que se ouvem na introdução da música. “Pitágoras” em nada deve aos grandes nomes e músicas do rock progressivo mundial. Com peças de piano influenciadas por composições eruditas e solos de violão clássico, a música é um arcabouço de experimentações sem fim, com dinâmica bem acentuada e presente, característica fundamental de bons discos de progressivo. Em “Desanuviar”, é possível ouvir, quase no fim da canção, linhas de sitar, instrumento de origem indiana com som bem característico, e inclusive tocado por Ravi Shankar. O emprego desse instrumento por Sérgio Dias, inusitado para o padrão musical do Brasil, ilustra a experimentação dos Mutantes neste disco, que viria a ser explorada “posteriormente” em O A e o Z, por intermédio de um instrumento de som peculiar chamado hang.

Ainda em “Desanuviar” (e em todo o disco), outro elemento que merece destaque são os vocais criteriosamente divididos em vozes distintas. É realmente bem interessante quando todos os integrantes da banda cantam, o que dá ainda mais o aspecto de unidade ao disco, que se mostra altamente técnico não somente no instrumental, mas também nas linhas de voz.

Merecem destaque aqui os solos de órgão e piano na faixa “Cidadão da terra”, que, além das já citadas influências do Emerson, Lake & Palmer, deixam evidentes outras bases de construção melódica que serviram de inspiração, como os solos de Jon Lord no Deep Purple. Outro fator de destaque nesta mesma faixa são as linhas criativas e marcantes de baixo, tanto na introdução da música quanto nos solos de órgão. Ao ouvi-las, é possível notar as influências dos timbres rascantes de baixistas como Chris Squire, do Yes, e o próprio Greg Lake, que já se fazia notar antes mesmo de assumir o baixo e os vocais do ELP, quando era vocalista e baixista do King Crimson; impossível não ficar vidrado nas convenções jazzísticas que podem ser ouvidas na parte instrumental de “21st century schizoid man”, faixa que abre In the court of the crimson king, de 1969.

Não é preciso nem dizer que Sérgio Dias teve uma participação fenomenal em Tudo foi feito pelo sol. Os solos de guitarra, bem como a elaboração dos riffs, contaram com uma criatividade ímpar, fugindo bastante da linguagem mais simples do rock e do blues que caracterizou os discos anteriores; não quero dizer aqui, de forma alguma, que isso significa uma qualidade menor destes em relação ao álbum em análise. Em “Deixe entrar um pouco d’água no quintal”, é possível ouvir licks de guitarra bem rápidos, precisos e nítidos, indicando que nem só de ambiência se constrói o progressivo. As já mencionadas peças de violão clássico em “Pitágoras” espelham bem o trabalho iniciado por Steve Howe, do Yes, que mesclava magistralmente elementos do rock com passagens eruditas e harmônicos, a exemplo do que se escuta em músicas como “Roundabout”.

Alguns elementos de mixagem também indicam experimentalismo em Tudo foi feito pelo sol. O principal deles já havia sido utilizado por Jimi Hendrix, em Axis: bold as love, e pelo Led Zeppelin, em Led Zeppelin II, que eram as possibilidades estereofônicas de gravação e escuta, por meio das quais, em alguns trechos, se escuta o que está sendo tocado em apenas um dos lados do fone, enquanto o outro fica em silêncio por alguns instantes, até que o som passe para este e o outro fique em silêncio, como uma espécie de sonoridade pendular.

Em suma, Tudo foi feito pelo sol não deve ser encarado apenas como um marco na carreira dos Mutantes; o rock brasileiro foi abalado por este petardo, que, a meu ver, representou o máximo do experimentalismo que o progressivo imprimia à música. Infelizmente, este é um álbum muito pouco lembrado pela maioria dos ouvintes em se tratando do tema “rock nacional”. Espero que minhas impressões, mais do que trazer gente que concorde com elas ou discorde delas, façam com que este disco seja ouvido e apreciado como ele deve ser. Boas audições! O disco pode ser ouvido na íntegra por meio do vídeo abaixo:

 

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