Thoreau, o estranho: uma nova interpretação de sua filosofia


"Eu li “Expect Great Things”, de Kevin Dann, em quatro manhãs consecutivas, às margens do lago Walden. Eu geralmente vou a Walden dirigindo, mas os carros - altos, eficientes, mecânicos - não foram feitos para a peregrinação espiritual que Dann, um historiador e naturalista, pretende iniciar com esta biografia transcendental de Henry David Thoreau. Então eu fui caminhando, lendo tão atentamente quanto pude. Um leitor que tenha grandes expectativas (alusão ao título do livro, que, em português, significa algo como 'Grandes expectativas', N. do T.) do livro de Dann certamente encontrará aspectos sobre Thoreau que nunca viu antes. Longe do percurso desgastado da academia, Dann familiariza o leitor com um protagonista que é um místico americano, um profeta da nova era, um explorador cósmico. Se essa é realmente a versão histórica de Thoreau, no entanto, parece bastante secundário para Dann. A questão principal para ele é o fato de Thoreau servir como guia espiritual do invisível" escreve John Kaag, autor de "A filosofia americana: Uma História de Amor", em artigo publicado por The New York Times, 12-01-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.

Expect Great Things
The Life and Search of Henry David Thoreau
Por Kevin Dann
387 pp. TarcherPerigee

Eis o artigo.

Henry David Thoreau, que completa 200 anos de nascimento em julho, é amplamente considerado o primeiro guru ambiental dos Estados Unidos. No entanto, este emblemático status demorou a chegar e, em muitos aspectos, foi inclusive irônico. Thoreau era considerado pela maioria dos seus contemporâneos como alguém muito excêntrico: seus melhores amigos eram crianças que o seguiam pelos bosques de Concord colhendo mirtilos. A popularidade do barbudo, que adorava passear, tornou-se uma redução gradual de suas excentricidades espirituais, a fim de se adequar a uma concepção cada vez mais reducionista do mundo natural. A visão de modernidade da natureza é restrita e sem mágica, o que, por sua vez, de acordo com Dann, reduz a nossa compreensão do seu guardião, Thoreau. Corrigindo isto, Dann evoca um mago naturalista.

A metodologia de "Expect Great Things" é, com o risco de subestimá-la, incomum. Ele continuamente evita quase toda a literatura secundária produzida sobre Thoreau nos últimos 30 anos, incluindo “Henry Thoreau: A Life of the Mind", biografia definitiva de Robert Richardson, lançada em 1986, e a mais recente “Thoreau’s Ecstatic Witness", de Alan Hodder. E Dann simplesmente resgata os escritos que publicados pelo próprio Thoreau nos 44 anos de sua vida: "Walden", "Desobediência Civil", "Walking" – seus principais textos – são tratados rapidamente.
Em todos os casos, Dann opta pela estrada menos percorrida, levando o leitor a lugares menos conhecidos, através de passagens escondidas na vida pessoal de Thoreau. O livro, organizado em ordem cronológica, consiste em uma cuidadosa (quase obsessiva) leitura dos diários e cartas de Thoreau, revelando um menino interessado no oculto, em histórias de fantasmas e em mágica, um adolescente que se debruçava sobre a lenda do rei Arthur e a mitologia grega, e um homem que interpretou o funcionamento da natureza através da astrologia e do xamanismo dos nativos norte-americano.

"Os astros despertam certa reverência," escreveu o amigo e mentor de Thoreau, Ralph Waldo Emerson, em "Natureza", "pois ainda que sempre estejam presentes, são inacessíveis; mas todos os objetos naturais exercem análoga impressão quando a mente está aberta a seu influxo". Na leitura de Dann, Thoreau foi fortemente atraído por essas forças elementares, presentes, mas sempre inacessíveis, levando-o a experimentar os mistérios da natureza, ao invés de reduzi-los. "A Ciência Antebellum", escreve Dann, em contraste, procurou eliminar o 'segredo' – no sentido do cultivo tranquilo de uma relação sacramental e misteriosa com a natureza – a partir de suas práticas e sentimentos." Esta é a maior perspicácia de Dann. A vida e os escritos de Thoreau iam de encontro à corrente do cientificismo que era dominante na época e continua definindo a nossa cultura intelectual. Em 1849, ano em que Thoreau começou a fazer suas caminhadas vespertinas, ele antecipa esta tendência ao escrever: "A ciência aplica uma regra finita ao infinito – e é o que se pode pesar, medir e observar. Seu sol já não nos encanta e enche o universo de luz." Dann também busca levar o seu leitor a se maravilhar, mais uma vez, com o cosmos. Ao selecionar trechos de cartas e diários de Thoreau, ele muitas vezes alcança este nobre objetivo. À medida que o livro se desenrola, no entanto, fica claro que, ao nos instigar a ter grandes expectativas, Dann, muitas vezes, pede que o seu leitor espere demais.

Desde o início, ele toma liberdades que poucos biógrafos contemporâneos ousaram tomar. Com uma escrita na borda entre provocativa e enfeitada, Dann anuncia no início do livro que "Concord tornou-se o círculo mágico no qual este mestre nascente dos elementais logo chamaria de seu próprio destino – e também dos EUA". Quando Thoreau se aproximou da meia-idade, ele foi permanentemente afetado pelas forças místicas da natureza – particularmente a lua cheia – e, de acordo com Dann, o seu "organismo sutil" se erguia "para fora de seu corpo físico, abrindo-o mais plenamente a correntes espirituais".

Ao invocar o profético Thoreau, o livro muitas vezes soa como as reflexões de um adivinho que quase nos convence. Dann estuda revistas de Thoreau – cheias de observações graciosas sobre o mundo natural – em busca do significado divino e de padrões sobrenaturais. Infelizmente, esta pesquisa é, por vezes, como um estiramento, principalmente quando Dann alcança os reinos da numerologia e da astrologia. "Nascido no sétimo mês do ano, o ritmo dos sete parecia estar inscrito nas experiências e tarefas mais significativas de Thoreau." Em sete anos, Dann, apressadamente, declara que "Walden" passou por sete revisões. Thoreau levou sete anos para completar "A Week on the Concord and Merrimack Rivers", em que discutia os sete dias da semana. "Thoreau" tem sete letras. O número da sorte sete, de acordo com os numerólogos, é o número de quem busca. Portanto, C.Q.D., Thoreau é alguém que busca. A conclusão pode estar correta, mas é banalizada pelo ilusionismo de Dann.

Muitos leitores e escritores foram atraídos ao grandes poderes de observação, quase sobre-humanos, de Thoreau, e à ideia de que algo diminuto – a menor das folhas, a mais leve das brisas – pode ser sentido tão profundamente e significa muito. Quando Thoreau encontra uma rara azaleia branca em 1853, seria o suficiente para sugerir que ele estava em sintonia com o quase inexistente. Mas isso não é o suficiente para Dann. Ele doura a pílula, observando animado que o nome azaleia vem de Pentecostes, "quando os recém-batizados usavam vestes brancas significando seu estado elevado". A implicação para Dann é clara: "A azaleia era emblemática de um tipo de Pentecostes pessoal para Thoreau; ele agora conseguia... falar na língua própria da natureza, batizando outros que ainda não haviam sido contemplados com tamanha graça". Neste momento, e em muitos outros, sente-se como se Dann estivesse tentando converter, ao invés de convencer, o seu leitor.

Não é preciso dourar a pílula. E os escritos de Thoreau não precisam ser embelezados. "Simplicidade, simplicidade, simplicidade", comanda Thoreau três (e não sete) vezes. Thoreau, de fato, interessava-se profundamente em identificar e experimentar os ciclos da natureza muitas vezes esquecidos: o fluxo e refluxo de água, a passagem das estações, a insistência do amanhecer. A vida era melhor vivida, para muitos Transcendentalistas, segundo esses ritmos sagrados. E eles eram, para Thoreau, profunda e pessoalmente sagrados. Este é o foco de “Expect Great Things", um foco de vital importância em uma época materialista que corre o risco de perder seus sentidos, espirituais ou não. No final do livro, Dann enfoca o que é mais essencial sobre Thoreau hoje – uma vida bem vivida e livre, sem arrependimentos, a serviço de ideais maiores, se não genuinamente transcendentais. "Expect Great Things” é excêntrico, estranho, até mesmo exagerado, mas mesmo assim admirável – um pouco como Henry David Thoreau.


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