A descolonização do olhar
Para o arquiteto Marcelo Rosenbaum, precisamos reconstruir nossa
maneira de olhar para objetos, pessoas e relações. Só assim vamos
enxergar a beleza do mundo
O que é menos ou o que é simples? Foram perguntas como essas que
nortearam os últimos anos de trabalho do arquiteto e designer Marcelo
Rosenbaum, de São Paulo. Parte dessa busca aconteceu em uma cidade no
interior do Piauí, Várzea Queimada. Por que lá? “Escolhemos o lugar por
conta de uma métrica. A cidade tem um dos menores valores do chamado
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)”, conta Marcelo, que morou pouco
mais de um mês por lá. Na convivência, ele conheceu histórias lindas.
Foi no vilarejo também que descobriu algo que tem colocado em prática em
sua vida diária, nas relações com as pessoas próximas, no trabalho: a
descolonização do olhar, uma maneira de enxergar a essência daquilo que
está, todos os dias, na nossa frente, com menos conceitos
preestabelecidos e mais sensibilidade e delicadeza. E foi desse ponto
que começamos nossa conversa.
Como essa história nasceu?
Surgiu de uma inquietação minha de fazer algo com mais propósito. Eu
estava na TV (Marcelo esteve à frente do quadro Lar Doce Lar, que
integrava o programa Caldeirão do Huck, na Globo), falando de casa, de
moradia. E comecei a ser bastante procurado por marcas diversas para
fazer eventos ou participar de lançamentos de produtos. Percebi o quanto
havia de investimento nisso. Só que as pessoas saíam desses eventos e
falavam: “Nossa, que festa linda da operadora de celular X”. Mas o
evento era da operadora Y. Por mais que a marca estivesse estampada ali,
era nítido que isso não tocava as pessoas. Então pensei: e se a gente
começar a criar ações, com marcas, que gerem impacto social? Haverá
transformação e uma fidelização muito maior do que apenas ir a um evento
para se entreter.
A partir desse pensamento, criamos (Marcelo e equipe) o A Gente
Transforma, uma ação para engajar marcas com impacto social. Claro que,
na prática, isso não é tão simples. Eu cheguei com muito mais entusiasmo
do que recebi de volta. Mas, apesar disso, o projeto nasceu. Nossa
primeira ação foi no Parque Santo Antônio, em São Paulo. Mas só a ação,
por si só, morre. E um movimento precisa de continuidade. Foram alguns
anos pensando em fazer isso da melhor maneira e com impacto real, e foi
assim que chegamos a Várzea Queimada, há quatro anos, no sertão do
Piauí. O lugar virou nosso grande laboratório – e estamos lá até hoje. A
cidade não tem água ou rede de esgoto, mas tem amor e relação. Descobri
que é um grande equívoco classificá-la como uma localidade com baixo
desenvolvimento humano.
Considero Várzea Queimada minha faculdade, uma universidade de
saberes ancestrais; e os caboclos e os índios, meus professores. Eles
estão conectados com a própria natureza, com o respeito ao que tem no
entorno, e não têm a vida calcada no pertencimento. Aprendi com essa
gente a ver a essência, a olhar para o que é mais importante. Hoje os
pilares do A Gente Transforma são a ancestralidade, a sustentabilidade e
a beleza; que é olhar para esse essencial.
Me dá um exemplo prático da busca dessa essência?
Em Várzea Queimada, fomos para ficar um mês. Tínhamos como meta ir
atrás de uma reconquista cultural e encontrar o artesanato deles,
independentemente do que o mercado queria ou não.
A gente foi lá para fazer troca, não fomos para resgatar, porque
ninguém precisa ser resgatado; nem para fazer capacitação, porque todos
são capazes. Ficamos, e, nos primeiros dias, as pessoas não traziam
nada. Porque, nesses lugares, o massacre do tal do desenvolvimento e da
classificação do baixo índice de desenvolvimento humano influencia a
vida das pessoas, que ficam com uma autoestima bem baixa. Como
consequência, consideram sem valor aquilo que seus ancestrais faziam.
Porque, em geral, a gente não dá valor para o que vem da terra, da nossa
herança. Até que, um dia, descobrimos na casa de uma anciã um cesto,
que eles chamam de bogoió, um objeto de palha de carnaúba feito para
guardar a colheita da roça.
Com o tempo, esse cesto foi trocado por baldes de plástico. E o
trabalho de cestaria passou a ser colocado de lado, porque isso os
conecta com a época em que eles não podiam comprar, com a pobreza, e
então o rejeitam, têm vergonha daquele objeto. Lembro que a anciã, a
dona do cesto, falou que aquilo era lixo. Ela disse que ia jogar fora,
que era algo que a avó dela fazia. E era um cesto lindo, que deveria
estar num museu, porque conta a história daquela comunidade. E daí
dissemos que era aquilo que procurávamos. Pegamos aquele objeto e a
partir dele nos inspiramos e reconquistamos dentro deles esse saber, de
como o cesto era feito, para que servia. E as pessoas foram contando as
histórias. Foi assim que surgiu toda uma coleção de cestos (vendidos nos
grandes centros urbanos).
O que essa ação de pegar algo que era considerado lixo e transformar em um produto desejado representou para eles?
A primeira coisa que eles acharam estranha foi a nossa abertura para
querer aprender com eles – e não em ensinar. E, depois, produzir algo, e
isso voltar em forma de dinheiro, o que foi fundamental. Porque o
dinheiro tem um papel importante, aí fez com que a comunidade acreditasse que aquele objeto
tem valor fora – porque dentro da comunidade não tem mais, é lixo. Eles
tiravam sarro dizendo que ninguém ia querer comprar aquilo. Quando veio a
primeira leva de venda de cestos, eles não acreditaram.
O resultado disso tudo é que hoje eles voltaram a acreditar nos
saberes deles. Ou seja, a partir do bogoió, criou-se uma potência dentro
da comunidade, uma maneira de vivenciar a chamada economia criativa.
Ver o saber de seus ancestrais com outros olhos, com mais valor, fez com
que valorizassem também a cultura deles: a música, a forma de comer dos
avós e bisavós, a maneira de viver. A condição em que eles vivem lá é
sem qualidade, saneamento, educação qualificada, sem visão de futuro,
sem saúde. Mas a ideia, hoje, também é criar uma realidade com mais
saúde, educação e bem-estar, só que preservando a cultura. Isso vem a
partir desse movimento, porque você joga luz naquela comunidade até
então esquecida.
Mas essa retomada da própria cultura leva tempo…
Sim, porque a gente fala de um massacre cultural de muitos anos.
Quando os portugueses chegaram aqui, eles propagavam que os habitantes
locais, os índios, eram pessoas sem alma. Construiu-se um país
escravizando, acreditando que as pessoas não tinham alma,
desconsiderando o saber de quem aqui estava. Então não é em um ou dois
anos que mudamos a maneira de pensar. Temos que olhar isso para daqui a
30, 40 anos. Mas temos como reverter a partir do nosso olhar, da nossa
abordagem, não olhando o diferente como exótico. Por aqui, rejeitamos
nossas três matrizes: o português é burro, o índio é vagabundo e o negro
é safado. A partir do sangue do afrodescendente é que nosso país foi
construído, e a gente não valoriza isso. E é a gente todo mundo, porque o
país é preconceituoso.
Essas nossas matrizes não estão incluídas no nosso repertório ou
mesmo nas escolas. Tudo é visto como exótico ou como diferente. Falamos,
por exemplo, da história das moradias brasileiras e nada se comenta
sobre as ocas. Você acredita que esses produtos, com tantas histórias
embutidas, poderiam ser acessíveis para todos? Não no ritmo de consumo
que temos hoje. Não dá para produzir, por exemplo, uma panela de barro
artesanal para todo mundo, para vender em larga escala. Você tem que
pensar em toda a cadeia. Quanto de barro você vai tirar da natureza?
Como fica a questão do transporte? O que a gente precisa refletir não é
sobre todos terem esses produtos,
mas a maneira como estamos consumindo as coisas.
mas a maneira como estamos consumindo as coisas.
Quando eu falo de um produto desses, não falo só sobre ele. Estou
falando sobre o tempo da natureza; sobre a maneira de as pessoas
pensarem e estarem no mundo. Artesanato no Brasil, por exemplo, é visto
como artigo de segunda categoria, como um brinde, como algo barato.
Ainda existe uma desvalorização do que é feito à mão. Mas artesanato é
saber, é ancestralidade.
Uma peça de barro carrega muito saber, liberdade e resistência, a
continuidade de uma vida, de uma história. É preciso desconstruir a
maneira como as pessoas enxergam as coisas. Uma peça de artesanato é,
assim, uma linha puxando um mundo de possibilidades. Uma bolsa da marca
italiana Hermès, por exemplo, é feita à mão. E as pessoas fazem fila
para comprar uma. Cada bolsa fala de tradição, de um celeiro que
trabalha com os mesmos artesãos, num saber passado de pai para filho.
Esse artigo nasce dessa história. E a marca só é cara porque está
calcada em cima do saber e do feito à mão. Por que uma peça artesanal,
por aqui, tem que virar brinde e ser barata? É uma percepção de
colonização, de desentendimento.
De que maneira isso pode mudar a vida de quem adquire um produto assim?
A partir do momento que você tem em mãos uma peça cheia de história,
você se conecta a isso e cuida desse objeto com um apreço especial. Você
entende o valor não só do objeto em si mas de tudo que ele carrega, que
tem a ver, também, com a sua própria natureza. O termo descolonização
do olhar é proposital? Sim. Eu me faço esse exercício diariamente: com
meus amigos, na minha relação amorosa, na relação afetiva com meus
filhos, no trabalho. A gente cai nesse padrão, o da imposição, de não
olhar para o outro como alguém que também tem uma sabedoria. A
colonização, que desacredita no outro, é algo que está intrínseco na
gente.
Você fala muito na “busca pela beleza”. Poderia explicar mais isso?
É a beleza que parte do entendimento de que não existe o exótico. É
olhar de maneira mais aberta, menos preconceituosa para o outro. As
pessoas olham para o índio, por exemplo, e acham bonitinho e exótico
aquele homem vestido daquele jeito diferente. Mas não gostam se ele
estiver com um celular. Você quer o índio ainda na estética do
imaginário, do zoológico, porque ele não é uma pessoa como você, é
alguém para apreciar. Aí você não consegue enxergar a verdadeira beleza,
ir além, não transcende. Tudo tem beleza quando você enxerga o outro
como um igual; não como diferente.
Trabalhar na TV foi um grande aprendizado para você?
Sim. Fiz sete anos de Lar Doce Lar. Eu recebia muita crítica porque,
de certa forma, eu julgava a beleza estética imposta ao trazer para um
ambiente aquilo que não necessariamente as pessoas esperavam – armários
planejados, por exemplo –, mas o que tinha relação com a história de
cada um. As pessoas gostam de ver, na decoração, uma beleza minimalista,
mas isso é europeu. O Brasil é barroco, exuberante, colorido. Mas, mais
do que isso, no programa da TV, eu entregava dignidade, que era algo
mais profundo. A porta de uma casa significa segurança e privacidade,
mas, em muitas residências pelo Brasil profundo, algumas famílias não
têm nem porta em casa. Uma cozinha nova, um piso no chão, um sofá para
sentar, uma cama para dormir não é luxo. É dignidade.
E, além disso, eu entregava uma casa colorida, trazia para o ambiente
a memória, a história das pessoas. E, para mim, o movimento não era só
para quem estava recebendo. Aquilo era uma ferramenta pra reverberar.
Era a primeira vez que se falava na TV sobre casa e se olhava para o ser
humano como vida. O que você chama de Brasil profundo? É esse
Brasilzão, enorme, que nasce além dos limites das grandes capitais. Mas
mesmo nas metrópoles também existe um Brasil profundo, que é aquele que
vai além da nossa vizinhança, da nossa rua, bairro, dos nossos trajetos
diários e da nossa realidade cotidiana.
Para você, o que é design? Tudo é design. O significado da palavra
vem de desígnio, a necessidade de servir ao próximo. O homem não queria
mais sentar no chão, então se designou um desenho para fazer uma
cadeira. O resto é contar histórias para diferentes maneiras de se
sentar. O homem não queria mais comer com a mão. Pensou-se num desenho e
daí surgiu o garfo e a faca. Design não é estética. Hoje, o design
virou uma apropriação estética e de agregar valor a algo. Esse objeto é
de design, então ele é mais caro. Só que tudo tem design: a casa feia ou
bonita, o móvel feio ou bonito. Tudo enquanto desígnio. E design é
também a forma de se relacionar.
Você desconstrói a matéria e coloca importância. E, no processo de
montar, você conta uma história (de um lugar, de uma comunidade, uma
família). Por esse olhar, o design é uma forma de redesenhar uma
relação.
TEXTO Ana Holanda
Gostaria muito de poder ajudar a descobrir os muitos "bogoiós" que existem Brasil a fora.
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