William Godwin: O homem racional - Parte I


Tal como Tolstoi e Stirner, William Godwin é um dos grandes filósofos libertários que permaneceram fora do movimento anarquista histórico do século XIX e que, entretanto, pelo seu próprio isolamento, demonstram até que ponto esse movimento teve origem no espírito da época. Godwin exerceu pouca influência direta sobre o movimento e muitos de seus líderes, cujas teorias tanto se assemelhavam às suas, não chegaram a perceber o quanto Godwin se havia antecipado a eles. Proudhon conhecia Godwin pelo nome, mas a única referência que fez a ele nas suas Contradições econômicas (1846), atribuindo-lhe pouca importância e tachando-o de "comunista" da mesma escola de Robert Owen, sugere que não devia estar familiarizado com a sua obra. Não há nenhuma evidência de que Bakunin soubesse muito mais do que Proudhon sobre Godwin, e não foi senão relativamente tarde, depois de já ter formulado suas próprias teorias, que Kropotkin chegou a ler Justiça política, percebendo a profunda afinidade entre suas ideias e aquelas expostas por Godwin. A partir de Kropotkin, Godwin passou a ser reconhecido pelos anarquistas mais intelectualizados como um de seus antecessores, mas sua influência, que foi poderosa, apareceu quase sempre em outras áreas.

Godwin jamais chamou a si próprio de anarquista, pois para ele a anarquia conservava o significado negativo que lhe fora dado pelos polemicistas do período da Revolução Francesa. Sempre que se referia a anarquismo, era para designar a desordem que resulta do colapso do governo sem que seja aceita uma "visão consistente e elaborada de justiça política". Como outros filósofos libertários que vieram depois dele, Godwin via a sociedade como um fenômeno que se desenvolvia naturalmente, capaz de funcionar independente de um governo, mas não compartilhava da fé que outros anarquistas depositavam nos instintos espontâneos da massa inculta. Nesse sentido, permanecia um homem do Iluminismo, acreditando que a educação era a verdadeira chave da liberdade e temendo que, sem ela, as paixões incontroláveis do homem freqüentemente não ficariam satisfeitas em obter a igualdade, mas os levariam a desejar o poder.

Entretanto, tão profunda era a sua convicção na capacidade destruidora da autoridade, que não chegava a condenar totalmente nem mesmo a anarquia concebida em termos negativos. Para esse homem, que acreditava numa vida ordenada sob a égide de uma razão imparcial, a extrema desordem era infinitamente mais desejável do que a extrema subordinação.

"A anarquia é transitória, mas a ditadura tende a se tornar permanente. A anarquia desperta a mente, difunde energia e iniciativa entre a comunidade, embora possa talvez não fazê-lo da melhor maneira... Mas na ditadura, a mente é esmagada sob a mais odiosa forma de igualdade. Tudo que promete grandeza está destinado a cair sob o jugo exterminador da suspeita e da inveja." 


No sentido positivo que o anarquismo adquiriu atualmente, Godwin coloca-se entre os primeiros nomes da tradição anarquista, pois os argumentos que utilizou em 1793, com a publicação de Inquérito sobre a justiça política, abrangiam todos os aspectos essenciais da doutrina anarquista. Godwin repudiava qualquer sistema social que dependesse do governo e apresentou sua própria concepção de uma sociedade simplificada e descentralizada, com um mínimo de autoridade que se iria tornando cada vez menos atuante, baseada na divisão voluntária dos bens materiais. E ele sugeria meios para atingir tal objetivo, através de uma propaganda divorciada de qualquer partido ou objetivo político.

Na essência, essa doutrina - que entusiasmou os poetas românticos, de Colleridge até Shelley, e por um breve período (durante a década que se iniciou em 1790) chegou a tornar-se o evangelho leigo dos radicais ingleses - era igual àquela que Proudhon proclamou durante o período revolucionário de 1840.

Godwin antecipou todo o anarquismo do século XIX quando resumiu no seu retumbante estilo "latinizado" a esperança que constituía a essência da sua doutrina: "Com que júbilo deve cada amigo bem informado da humanidade esperar pela dissolução do governo político! Essa máquina brutal, a única e eterna causa de todos os erros da humanidade, tem males de vários tipos incorporados à sua substância, os quais não poderão ser removidos senão com a sua total destruição".

Em Godwin é possível ver, mais claramente do que em qualquer dos outros escritores libertários posteriores, as várias correntes que se uniram para produzir o ponto de vista anarquista. A Revolução Francesa terá certamente dado a Godwin o impulso imediato para escrever Justiça política e proporcionou-lhe um público pronto a recebê-la com um entusiasmo que ainda hoje nos provoca espanto, quando recordamos aqueles anos - durante os quais, como disse Hazzlitt numa passagem de suas memórias, William Godwin "resplandecia no firmamento da reputação". Mas as idéias que Godwin propôs na Justiça política já existiam muito antes da Revolução Francesa. 

A “Tomada da Bastilha”, no centro se vê a prisão de Jourdan de René de Bernard, marquês de Laundry (1740-1789).

Já em 1784, quando seu entusiasmo pela educação seguia linhas mais tradicionais, Godwin planejou criar uma escola particular e publicou um curioso prospecto intitulado Um relatório sobre o Seminário que será inaugurado segunda-feira, 4 de agosto, em Epson, Surrey. Por razões que se tornam evidentes para quem o lê, esse prospecto não conseguiu atrair um só aluno, mas tem um lugar garantido entre os primeiros e mais curiosos exemplos de literatura anarquista. Godwin dedicou muito pouco espaço aos aspectos práticos que todo pai de aluno esperaria encontrar, preocupando-se muito mais em apresentar suas teorias sobre a natureza da sociedade e a função geral da educação. Em consequência, Um relatório... parece, em determinados momentos, um ensaio das teorias sobre o governo, que Godwin deveria desenvolver mais tarde na Justiça política e nas propostas por uma educação livre que elaboraria no The Inquirer (1797). O parágrafo seguinte revela claramente que rumo haviam tomado seus pensamentos cinco anos antes do início da Revolução:

"O estado da sociedade é incontestavelmente artificial; o poder de um homem sobre o outro deve provir sempre de um consenso ou de uma conquista, pois, por natureza, somos iguais. A consequência lógica é que o governo deve depender sempre da opinião dos governados. Permita que o mais oprimido dos povos que exista debaixo do céu mude uma vez seu modo de pensar e ele será um povo livre... O governo tem uma capacidade limitada para tornar os homens virtuosos ou felizes: é apenas na infância da sociedade que ele pode fazer alguma coisa; na maturidade, consegue apenas dirigir algumas poucas ações externas. Mas nossas disposições morais e nosso caráter dependem muito, talvez inteiramente, da educação." 


 Continua...

Texto: George Woodcock no livro História das ideias e movimentos anarquistas - Vol l

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