William Godwin: O homem racional - Parte II

 

Continuando (Parte I aqui!)

Aqui encontramos em embrião as ideias-chave da Justiça política. Uma sociedade artificial e regida por um governo. Godwin enfatiza o poder do pensamento e atribui especial importância à educação, por julgar que o caráter humano é determinado pelo meio e não pela hereditariedade, c que os erros humanos têm origem na má educação. Mais adiante, ainda no mesmo prospecto, observa: "Os erros dos jovens não provêm da natureza, que é a mãe bondosa e inocente de todos os seus filhos, sem distinções; eles derivam dos erros da educação".

Embora Godwin ainda não tivesse chegado à conclusão lógica de que todo governo é positivamente mau, já está pronto a demonstrar que ele contém muito pouca coisa verdadeiramente benéfica.

A linguagem e até a forma como foram apresentadas as ideias no Relatório... têm um "toque" francês, lembrando Helvetius, d'Holbach e Rousseau, os escritores franceses que Godwin vinha lendo desde 1781. Mas seria um erro supor que Godwin foi apenas um simples discípulo dos filósofos sociais do século XVIII; ao utilitarismo de Helvetius e d'Holbach (e de Bentham também, já que falamos nisso), ele opunha uma visão do homem como parte de um sistema de ordem moral universal e afirmava que as verdades imutáveis devem ser os critérios para nossas ações. Ao contrato social de Rousseau, opunha a ideia de uma sociedade vivendo de acordo com as leis da moral; e à visão de Rousseau, que considerava a educação um processo cujo objetivo seria impor um determinado molde à mente do aluno, opunha o intercâmbio de ideias, mestre e aluno a influenciar-se mutuamente, o que estimularia a mente da criança a desenvolver suas tendências naturais. "O jugo gentil do preceptor deveria ser confundido, tanto quanto possível, com as eternas leis da natureza e da necessidade."

Na verdade, Godwin revela, talvez mais do que qualquer outro escritor do seu tempo, as modificações que os elementos radicais dos dissidentes ingleses impuseram ao pensamento libertário do século XVIII. Godwin pertencia a uma família de ministros dissidentes. Seu avô e um tio haviam sido pregadores famosos; seu pai foi o pastor pouco eloquente mas rigoroso de uma série de congregações rurais independentes. O próprio Godwin mostrou desde cedo a inclinação para seguir a profissão da família. Na infância, sua brincadeira favorita era pregar sermões lancinantes, com os quais esperava converter seus colegas de escola. Mais tarde, tal como Hazzlitt, frequentou a Academia Hoston, a melhor entre todas as excelentes faculdades que os dissidentes tinham fundado durante o século XVIII, quando suas crenças ainda os impediam de frequentar as universidades. Quando saiu, ainda conservava a ideia de se tornar ministro, e de 1778 a 1783 presidiu uma sucessão de pequenas capelas não-conformistas em East Anglia e nos Home-Counties com a certeza crescente de que não era aquela a sua verdadeira vocação. Em Beaconsfield decidiu finalmente que havia perdido qualquer vocação que pudesse ter tido no início da carreira e partiu para Londres, pensando em se tornar escritor. Mas até o fim da vida conservou as maneiras e os trajes de um ministro não-conformista. 

Primeira Associação Metodista em 1743 - Hywel Harris e outros.
Antes de abandonar o ministério, Godwin converteu-se - graças aos argumentos de J. Priestley -, trocando o calvinismo da infância pelas doutrinas de Socinius, que negava a divindade de Cristo e afirmava que a alma do homem nasce pura - uma opinião que vinha ao encontro da ideia mais tarde desenvolvida por Godwin, segundo a qual a criança era uma tabula rasa, sobre a qual a experiência escreve a sua história. Mas não foi senão em 1790, exatamente um ano antes de começar a escrever a Justiça política, que Godwin finalmente abandonou qualquer espécie de fé cristã e, sob a influência de seu grande amigo Holcroft, tornou-se um ateu declarado e confesso, posição que só viria a abandonar para refugiar-se num vago panteísmo que dominou o fim da sua vida.

Mas embora na década iniciada em 1780 Godwin tivesse começado a abandonar progressivamente os dogmas da religião que praticara na juventude, não devemos por isso supor que tenha também se libertado da influência intelectual da tradição dissidente. Seu individualismo, a suspeita com que encarava o governo, a ênfase na sinceridade como regra que deveria reger as relações humanas foram todas adquiridas na sua juventude entre os independentes e viriam eventualmente a tornar-se os mais importantes pilares da visão anarquista que ele construiria na Justiça política. Mas há uma outra influência importante à qual os estudiosos da obra de Godwin não deram a devida atenção: quando tinha onze anos, seus pais o retiraram da última de uma série de escolas rurais e o mandaram para Norwich, para tornar-se o único aluno de Samuel Newton, pastor da congregação independente. Newton era uma daquelas curiosas misturas de radicalismo e intolerância que têm sido uma das características marcantes dos movimentos de esquerda desde a Guerra Civil. Newton era um dos partidários de John Wilkes e também um discípulo de Robert Sandeman, negociante de tecidos e apóstolo de uma pequena seita fundamentalista que havia sido banida pelos presbiterianos porque se opunha a qualquer forma de governo dentro da Igreja e que posteriormente iria ligar-se aos independentes. No fundo, os sandemanianos continuavam sendo calvinistas; sua concepção de predestinação era tão rigorosa, afirmava Godwin, que, depois de Calvino ter amaldiçoado noventa e nove por cento da humanidade, Sandeman tinha imaginado uma forma de amaldiçoar noventa e nove por cento dos seguidores de Calvino.

Muito cedo Godwin converteu-se a essa crença e permaneceu fiel a ela desde a adolescência até os vinte anos, pois é ele mesmo quem conta ter saído de Hoston aos vinte e três anos com sua crença nas ideias de Sandeman inalterada, só começando a abandoná-las algum tempo depois. Na verdade, jamais chegou a libertar-se totalmente da influência dessa seita radical, e um rápido exame de suas idéias básicas sugere que vários aspectos da Justiça política não são mais do que uma forma leiga de sandemanianismo. 

Robert Sandeman (1718–1771)
 

Sandeman afirmava que a Bíblia continha tudo que era necessário para a Salvação; obviamente Godwin discordava dele nesse ponto, embora concordasse com muitas das conclusões a que ele havia chegado a partir dessa ideia. Os sandemanianos negavam a validade do governo na Igreja; Godwin negava a validade de qualquer governo. Os sandemanianos afirmavam que um homem religioso não deve envolver-se nos negócios do Estado; Godwin afirmava o mesmo do homem honrado. Eles estabeleceram uma organização de congregações independentes, sem ministros ordenados. Godwin imaginou uma rede de paróquias independentes, sem governantes, como sendo a estrutura básica ideal para uma sociedade libertária. Finalmente, os 70 sandemanianos acreditavam na propriedade comum, vendo nela um ideal desejado, e ensinavam que economizar era um pecado, pois todo o excesso deveria ser distribuído entre aqueles que necessitassem dele; nas congregações sandemanianas era costume, aparentemente, que os membros mais pobres fossem sustentados por seus irmãos relativamente mais afluentes. Aqui há mais um paralelo com o sistema godwiniano, que prevê a propriedade comum partilhada segundo as necessidades de cada um, ressalta os males morais causados pela propriedade acumulada, julgando que o homem pobre não só tem o direito de ser sustentado por aqueles mais bem aquinhoados mas que estes últimos teriam positivamente o dever de sustentá-lo.

A doutrina de Sandeman foi apenas uma entre as muitas influências que contribuíram para dar forma à Justiça política. Entretanto, ela contém, indiscutivelmente, as origens de alguns dos mais importantes elementos do sistema de Godwin; também serve para demonstrar que desde a sua infância Godwin conhecia bem uma ou outra das ideias antiautoritárias e comunistas que desenvolveria mais tarde. Ele não se tornou um filósofo anarquista após experimentar uma súbita conversão, mas depois de sofrer um processo gradual em que chegou às conclusões lógicas a partir de conceitos que sua mente extremamente receptiva já conhecia há muito tempo. Nesse sentido, os filósofos sociais franceses e mesmo escritores ingleses como Locke e Paine não serviram apenas para dar-lhe novas ideias, mas para proporcionar-lhe os argumentos racionais e a estrutura lógica com as quais pôde desenvolver o individualismo que lhe fora transmitido pela tradição dissidente. Godwin mantém quase todas as ideias dos dissidentes em sua forma mais radical, exceto o elemento religioso - a ideia de que tudo o que fazemos é uma preparação para o Reino do Céu.

Na verdade, a única ligação que a Justiça política mantém com a religião é em termos de suas origens mais tarde abandonadas. Por si própria ela apresenta uma combinação tipicamente anarquista do político e do moral, não se limitando a criticar formas de organização governamental, mas chegando também a uma solução baseada na transformação das opiniões pessoais e na reforma da conduta pessoal. E é assim que Godwin surge como o primeiro escritor social importante a propor conscientemente as implicações extremas daquele mundo pós-reformista, no qual, como disse Maitland, "pela primeira vez o Estado Absoluto enfrentou o Indivíduo Absoluto". 

Continua...

Texto: George Woodcock no livro História das ideias e movimentos anarquistas - Vol l

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