William Godwin: O homem racional - Parte III


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Continuando...

Assim, a partir da sua raiz - a dissensão inglesa - e alimentada por duas décadas de leitura assídua dos clássicos gregos e da literatura inglesa e francesa, desde o fim do século XVII em diante, a Justiça política finalmente deu seus frutos, sob a revigorante luz do sol que a Revolução Francesa lançou pela primeira vez no mundo ocidental.

Na primeira fase da Revolução, quando ainda não havia derramamento de sangue e a luta entre facções ainda não tinha culminado no terror, o entusiasmo de Godwin quase não conhecia limites: "Meu coração se enche de ardentes sentimentos de liberdade (lembraria ele mais tarde, com palavras que nos fazem pensar nas confissões de Wordsworth). Eu tinha lido com grande satisfação a obra de Rousseau, Helvetius e outros, os mais populares autores da França. Observara neles um sistema mais geral e mais simplesmente filosófico do que o da maioria dos autores ingleses que se dedicam a temas políticos, e não pude deixar de alimentar ardentes esperanças numa Revolução da qual tais escritos haviam sido os precursores".

Entretanto, ele observara que continuava a desaprovar o "governo de massa e a violência" e a desejar apenas "as transformações políticas que tivessem origem na luz clara da compreensão e nos sentimentos mais puros do coração".

Mas, como já vimos, não foi a Revolução Francesa em si que fez de Godwin um libertário - Godwin apenas viu nela um acontecimento que serviria para colocar em prática as suas ideias, então em pleno desenvolvimento, e esse fato explica, em parte, a firmeza com que manteve suas opiniões radicais nos dias que se seguiram a 1797, quando a reação política reinava na Inglaterra e a maioria dos antigos partidários da Revolução passava a ser seu inimigo. Suas ideias tinham sido concebidas independentemente dos acontecimentos da França, e, quando a Revolução degenerou em violência e tirania, isso não fez com que abandonasse suas crenças básicas, mas, pelo contrário, veio reforçar seu pensamento original de que toda a mudança política é inútil, a menos que seja fruto de uma mudança no comportamento ético.

Embora a Revolução Francesa proporcionasse um clima apropriado, restam algumas dúvidas sobre os reais motivos que levaram Godwin a lançar-se ao trabalho em Justiça política. O próprio Godwin afirmava que a concepção original surgira a partir da observação das imperfeições e erros de Montesquieu e do desejo de apresentar um trabalho menos imperfeito do que o L'Esprit des Lois do escritor francês. Por outro lado, sempre se acreditou, embora Godwin jamais o tivesse confirmado com suas próprias palavras -, que Justiça política pretendia ser uma resposta abrangente às Reflexões sobre a Revolução Francesa, de Burke. Godwin certamente tinha consciência da necessidade de responder a Burke, já que foi um dos integrantes do pequeno comitê responsável pela publicação dos Direitos humanos de Paine, uma resposta declarada às Reflexões. Mas isso ainda não nos diz nada sobre quais seriam suas verdadeiras intenções ao escrever Justiça política, e só nos resta supor que o desejo de responder a Burke pudesse ter sido um entre os vários motivos que o levaram a escrevê-la.

Thomas Paine e o notável "Rights of Man"

Uma vez iniciada, a ideia de Justiça política foi sendo desenvolvida à medida que ia sendo escrita e, como a maior parte das grandes obras da literatura mundial, foi aos poucos adquirindo vida própria, indo muito além da primitiva intenção de Godwin. Na verdade, a estrutura do pensamento, desenvolvida de forma tão lógica que parece agora tornar o livro tão importante, só foi aparecer enquanto este ia sendo desvendado, durante o processo de criação.

Godwin sabia disso, especialmente porque os capítulos eram impressos tão logo ficavam prontos, um processo que não lhe permitia eliminar as inevitáveis contradições que surgiam à medida que suas opiniões iam amadurecendo.

Com o avanço das pesquisas, as ideias do autor tornavam-se cada vez mais perspicazes e amadurecidas - explicou ele num prefácio justificativo. Ao iniciar o trabalho, tinha consciência de que, pela sua própria natureza, o governo frustra o aperfeiçoamento do raciocínio individual, mas, enquanto escrevia, pôde entender melhor todo o alcance dessa proposição, percebendo com maior clareza qual seria o remédio para esse mal.

Justiça política apareceu em 1793. A reação política já tinha começado e o governo perseguia os radicais que haviam demonstrado simpatia pela Revolução Francesa. Dois meses antes, Paine fora condenado à morte por ter publicado o Direito do homem e fugira para a França depois de receber uma mensagem de William Blake na qual este o avisava que funcionários da Coroa andavam a sua procura. Isso deu-lhe tempo suficiente para fugir. Godwin devia saber que ele também poderia vir a ser molestado por ter escrito um livro tão direto quanto Justiça política, mas a covardia moral não se incluía entre os seus defeitos e no prefácio ele faz um sereno desafio aos inimigos da liberdade literária.

"É preciso provar que um projeto foi criado para suprimir a atividade da mente e para acabar com a investigação científica. Com referência ao incidente, assumindo um ponto de vista pessoal, o autor tomou uma resolução: seja qual for a conduta adotada por seus compatriotas, ela não conseguirá abalar a sua tranquilidade. Ele está decidido a cumprir seu dever, auxiliando o progresso da verdade e, se vier a sofrer de alguma forma por agir desse modo, não há certamente nenhum mal que possa lhe acontecer capaz de trazer consigo uma compensação mais satisfatória."

Tal filosofia ante a perspectiva de uma possível perseguição era talvez mais um presente de sua herança dissidente; pelo menos alguns entre seus antepassados deve ter enfrentado momentos de risco semelhante por amor a seu não-conformismo. Mas Justiça política não sofreu perseguições.

Uma famosa história conta que quando o Gabinete discutia a possibilidade de ser aberto um processo contra Godwin, Pitt considerou que não valeria a pena fazê-lo, observando que um livro que custava 3 guinéus não poderia exercer tanta influência. Veremos mais tarde o quanto ele estava errado.

No resumo de Justiça política que se segue, limitar-me-ei a abordar, tanto quanto possível, os aspectos que confirmam ter Godwin se inserido no início da tradição intelectual anarquista. A extraordinária perfeição com que o livro antecipa as várias facetas do pensamento libertário -de tal forma que ainda hoje continua sendo uma das mais completas exposições das ideias anarquistas - explicará por que dedico tanto espaço a falar de um único - e memorável - tratado.

E impossível iniciar uma discussão sobre o anarquismo de Godwin sem considerar a ideia de necessidade que impregna a sua obra-prima. Tal como a via Godwin, a necessidade era realmente a força imutável e impessoal que movia o Universo, expressando-se através de leis naturais e determinando as ações dos seres humanos.

As teorias deterministas não eram raras entre os anarquistas, pois muitos dos sucessores de Godwin aceitaram o determinismo científico dos evolucionistas do século XIX. Na verdade, a tendência anarquista para confiar na lei natural e o desejo de retornar a um modo de vida baseado em seus preceitos levam, por uma lógica paradoxal, a conclusões deterministas que obviamente entram em choque com a crença na liberdade de agir do indivíduo.

A leitura de Justiça política deixa bem claro que a ideia que Godwin tinha do determinismo não era, de modo algum, desprovida de tais contradições. Um raciocínio determinista não só era algo que se poderia esperar de um ex-calvinista; ele só poderia despertar entusiasmo num homem que ambicionava alcançar a isenção filosófica e que preferia sentir pena das pessoas não por julgar que infringissem as leis voluntariamente, mas por considerá-las vítimas das circunstâncias. Entretanto, embora sua herança intelectual e sua própria natureza o impelissem para o determinismo, era evidente que Godwin já havia percebido as dificuldades que teria para conciliar anarquismo e determinismo. Se a determinação existe e é uma lei da natureza, como explicar o fato de que a humanidade tenha se desviado tanto do caminho certo, permitindo que sistemas artificiais de autoridade tomassem o lugar das formas naturais de organização social? Por outro lado, se o governo é algo inevitável - como devem ser, para os deterministas, todas as coisas que existem -, como poderemos condená-lo? Finalmente, que significado poderão ter a liberdade pessoal e a escolha responsável, pelas quais lutaram todos os anarquistas, inclusive Godwin, num mundo determinista? Será possível ser um político libertário com uma filosofia determinista? Os anarquistas tentaram resolver esse problema de várias maneiras. Poucos optaram pela atitude que nos pareceria mais lógica, aceitando a visão absurdista ou existencialista de um mundo indeterminado onde a lei natural não existe. A maioria deles parece ter adotado uma atitude de aceitação do determinismo, relegando-o, porém, a certos aspectos da vida. É impossível negar a determinação natural: envelhecemos e morremos, somos obrigados a reconhecer nossas fraquezas físicas e até morais. Mas, uma vez aceitas voluntariamente essas limitações, seremos livres - dentro dos limites que elas nos impõem, e então só o evitável conseguirá escravizar-nos. A sociedade humana é o maior domínio do evitável e do artificial e é essa precisamente a área em que a vontade consegue funcionar de forma mais eficaz. Em outras palavras, o homem não pode negar a determinação física e psicológica, assim como não pode negar as catástrofes da natureza; mas pode negar-se a continuar escravo de outros seres humanos ou de instituições criadas pelo homem.

Na prática, Godwin - tal como outros anarquistas que vieram depois dele - propunha um meio-termo entre determinação e liberdade, nem sempre evidente quando ouvimos falar da determinação como de uma deusa cega, mecânica e absoluta. Ninguém conseguiu explicar melhor esse aspecto do pensamento de Godwin do que o Dr. F. E. L. Priestley em sua introdução e edição fac-símile de Justiça política, publicada em 1946. Priestley sugere que Godwin dá tanta importância à determinação porque, tal como Hume, Hartley e d'Holbach, ele imagina o livre-arbítrio como "total irresponsabilidade de comportamento" ou como "querer ou escolher sem motivos, ou ser capaz de impedir que os motivos influenciem a vontade". A tal ideia, o Dr. Priestley opõe a definição de Locke sobre a liberdade como "uma forma de determinação pelo último resultado a que chegou o raciocínio, com todas as dúvidas lógicas de uma vontade livre, mas determinada", que em sua opinião expressaria melhor a idéia de liberdade. O que Godwin deseja evitar, sugere Priestley, é que a vontade se torne algo independente da idéia de compreensão. E, na aplicação que faz da ideia de determinação, não há nada que conteste a existência de uma vontade livre - embora limitada - tal como foi definida por Locke.

Francis Ethelbert Louis Priestley (1905-1988)

Das duas espécies de determinismo, aquele em que a mente é determinada pela experiência passada e aquele em que ela é determinada por um julgamento futuro - continua 1'riestley - é esta última a mais importante no sistema criado por Godwin. Ao mesmo tempo, o desejo de criar uma ciência exata da moral, baseada na previsibilidade do comportamento, na descoberta de princípios gerais e no controle do processo, leva-o a preferir a forma mais empírica. A distinção que estabelece entre ações voluntárias e involuntárias sugere que o comportamento involuntário expressaria um tipo de necessidade ditada por experiências passadas, enquanto as ações voluntárias seriam sempre determinadas por um juízo, e teriam origem numa proposição cuja verdade foi apreendida. É difícil distinguir esse segundo tipo de determinismo racional e teológico daquele que é geralmente considerado livre-arbítrio. Na verdade, toda a doutrina de Godwin é basicamente igual à doutrina tomista de livre-arbítrio, tal como foi descrita pelo Prof. Taylor. Ao agir, sofremos a influência de fatores cuja importância é salientada por várias ciências, mas algumas vezes é possível eliminar essa influência e avaliar de forma imparcial os méritos das alternativas possíveis. Ao fazer tal avaliação, a vontade é determinada exclusivamente pela superioridade da alternativa proposta. Essa capacidade de escolher considerando apenas os méritos é tudo o que os defensores do livre-arbítrio podem pretender com justiça. Baseados nessa ideia, podemos colocar Godwin entre os defensores do livre-arbítrio.

A visão do Dr. Priestley é confirmada pelos últimos trabalhos de Godwin, especialmente Reflexões sobre o homem, o último volume de ensaios que publicou em vida. Os atos praticados pelo homem, afirma ele, estão inseridos numa corrente necessária de causa e efeito, mas a vontade humana é, a um só tempo, causa e consequência desse processo. As ações do ser humano só se tornam voluntárias - o que implica dizer, livres - na medida em que ele é capaz de alterar a direção dessa corrente, mesmo que jamais consiga destruí-la. A vontade e a confiança na sua eficácia permanecem até a nossa morte. E ela que nos inspira a invencível perseverança e as heroicas energias; sem ela, seríamos apenas blocos inertes e sem alma, sombras do que a história registra e a poesia imortaliza, e não homens.

O livre-arbítrio é parte integrante da ciência do homem, podendo até ser considerado seu capítulo mais importante... Mas, embora a doutrina da determinação das lições humanas não possa jamais determinar as regras do meu relacionamento com os outros, ainda assim terá a sua utilidade. Servirá para moderar nossos excessos e fazer com que escolhamos o caminho intermediário preconizado pela mais sábia filosofia. Olharemos então com piedade e até com simpatia os homens de cujas fraquezas somos testemunhas e aqueles que cometem crimes, convencidos de que eles são parte de uma grande engrenagem e, assim como nós, movidos por impulsos sobre os quais não têm nenhum controle.

Em outras palavras: na velhice, Godwin aceitou a divisão básica na atitude determinista - que, embora seja impossível do ponto de vista filosófico encontrar alguma alternativa para a determinação, na prática agimos como se OS homens fossem livres. Ele admite que "jamais conseguiremos despojar-nos de nossas ilusões sobre a liberdade das ações humanas", nem seria desejável que o fizéssemos. Resumindo, admite a contradição que existe entre um universo dominado por leis imutáveis e o sentimento que o homem tem de sua própria liberdade e acolhe pragmaticamente essa contradição, criando com isso uma daquelas situações de equilíbrio entre ideias e condições opostas que fazem as delícias de muitos dos seus sucessores libertários, Especialmente de Proudhon, é claro.

É dentro dos limites dessa região suspensa entre o determinado e o voluntário que Godwin ergue a estrutura da sua Justiça política. Ele começa a partir da suposição de que "a felicidade da espécie humana é o mais desejável dos objetivos da ciência". E entre todas as formas de felicidade, coloca em primeiro lugar a felicidade "intelectual e moral". O mais poderoso inimigo dessa felicidade seria "o governo equivocado e corrupto". Seu livro tem, portanto, um duplo propósito; é, ao mesmo tempo, um inquérito sobre o funcionamento político da sociedade, mas também -assim espera Godwin - "um proveitoso veículo de aperfeiçoamento moral... após consultá-lo, nenhum homem deixará de sentir-se fortalecido em seus hábitos de sinceridade, integridade e justiça". Depois de tecer melancólicas considerações sobre a história dos governos, de suas infindáveis guerras externas, da pobreza endêmica e da repressão periódica que promovem dentro de suas fronteiras, Godwin conclui que, embora os males da vida política provavelmente jamais se acabem, vale a pena manter a esperança de que um dia será possível substituir essa "história de crimes" por uma sociedade "verdadeiramente livre e igualitária". Mas a confiança com que fala sugere que, pelo menos nesse período de apogeu de sua carreira, Godwin nem de longe acreditava ser o porta-voz dessa desalentada esperança.

Ele começa com quatro proposições básicas. Em primeiro lugar, afirma que "o caráter do homem é consequência de suas percepções", e que não nascemos nem bons nem maus. Se isso é verdade, a eliminação de fatores externos nocivos eliminaria também as tendências criminosas dos seres humanos. Mas não se trata apenas de agir sobre os indivíduos, alterando o meio em que vivem. E preciso despertar seu raciocínio, pois as ações voluntárias têm origem em juízos de bondade e desirabilidade, sendo portanto atos da razão. Como tal, é possível alterá-las pelo uso de formas racionais de persuasão. Mesmo a força do ambiente pode muitas vezes ser contrabalançada pela adequada indução de conceitos.

Isso nos traz à segunda proposição básica. De todos os meios capazes de "agir sobre o pensamento", nenhum é mais poderoso do que o governo. Aqui, observamos uma diferença significativa do Relatório sobre o Seminário, em que Godwin atribuía este papel à educação. Agora, ele explica que "a instituição política é extremamente eficaz exatamente ali onde a educação é deficiente: seu âmbito de ação". É essa força que as "instituições concretas" detêm - afirma Godwin - que mantêm vivos os erros do mundo. Pois, como todos os anarquistas, Godwin também acredita que, se entregue a si mesma, a mente humana tenderá a reconhecer o erro e a aproximar-se cada vez mais da verdade.

"Pela sua própria natureza, a injustiça não poderia manter-se por muito tempo. Mas o governo coloca sua mão sobre a mola que impulsiona a sociedade e impede que esta se mova. É o governo que dá força e permanência aos nossos erros. É ele que contraria as verdadeiras tendências do pensamento e, em vez de permitir que busquemos a perfeição no futuro, nos ensina a procurá-la no passado. É ele que nos incita a buscar o bem comum não na inovação e no progresso, mas na aceitação reverente das decisões de nossos antepassados, como se fosse da natureza da mente degenerar sempre, jamais desenvolver-se."


Continua...

Texto: George Woodcock no livro História das ideias e movimentos anarquistas - Vol l

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