William Godwin: O homem racional - Parte IV


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Parte III

Continuando...

A terceira proposição de Godwin é na verdade um corolário da segunda: o governo é tão mau na prática quanto na teoria. Para demonstrá-la, ele concentra sua atenção especialmente nas diferenças econômicas entre as classes sociais do mundo em que vivia no século XIX. Tanto a legislação quanto a execução das leis favorecem os ricos. E, realmente, pela sua própria natureza, as instituições políticas, ao concederem poderes e privilégios a determinados indivíduos, "reforçam a suposta superioridade da riqueza". Godwin foi um dos primeiros a descrever com clareza a ligação entre propriedade e poder, que fez dos anarquistas inimigos tanto do capitalismo quanto do Estado.

A quarta proposição básica é a famosa declaração sobre a perfectibilidade do homem: "A perfectibilidade é um dos aspectos mais característicos da espécie humana, de tal modo que é lícito supor que, tanto do ponto de vista político quanto do intelectual, o homem esteja em constante processo de aperfeiçoamento".

Godwin reforça essa ousada afirmação quando compara o homem primitivo e o civilizado e mantém, com uma ingenuidade digna de Ruskin quando jovem, que até nas artes é evidente essa contínua evolução. Mais tarde - como vimos num capítulo anterior - negaria essa intenção utópica afirmando que, ao declarar tal coisa, queria apenas dizer que o homem era capaz de infinitos progressos. E mesmo aqui seu progressivismo difere do tipo vitoriano comum por ser basicamente ético e considerar como seu objetivo principal efetuar no indivíduo uma transformação que o fará retornar à condição de integridade que lhe é natural e da qual foi desviado pela submissão às instituições políticas.

Godwin salienta o valor da justiça ao desenvolver - a partir de suas quatro proposições básicas - uma discussão sobre os princípios da sociedade... A sociedade - afirma ele - surgiu da percepção dos homens sobre a necessidade da ajuda mútua. E sua mola propulsora - uma norma ética -é a justiça, que Godwin define como uma regra de conduta que tem origem no vínculo entre um ser perceptivo e outro. A justiça exige que façamos tudo que estiver ao nosso alcance para ajudar outros indivíduos, de acordo com suas necessidades e merecimento. Godwin vê nossa pessoa e nossas propriedades como objetos que colocamos à disposição da humanidade.

"Devo empregar todo o meu talento, toda a minha compreensão, toda a minha força e todo o meu tempo na prática do bem. Entretanto, é preciso tomar cuidado para não colocar o bem geral ou a própria sociedade acima do indivíduo. O que é bom e justo para a sociedade será sempre o que for justo e bom entre os indivíduos, já que a sociedade nada mais é que um conjunto de indivíduos. Suas exigências e deveres devem ser a soma de exigências e deveres desses indivíduos, um não mais precário e arbitrário do que o outro." O objetivo da sociedade é fazer tudo que puder contribuir para a felicidade de seus membros. Mas a natureza dessa felicidade será definida pela natureza da mente. Aquilo que mais contribuir para ampliar a inteligência, estimular a virtude, incutir-nos a generosa consciência de nossa independência, eliminando tudo que puder opor-se aos nossos esforços, será a felicidade.

Em outras palavras, a sociedade é útil quando ajuda o homem a tornar-se um ser moral. Mas aqui chegamos a outro tipo de relação: se os vínculos que unem o homem à sociedade são uma espécie de padrão horizontal e ampliado dos vínculos que unem os indivíduos, sua relação com a moral é vertical, pois, como insiste Godwin:

"Se existe algo fixo e imutável, é a moral. Portanto, é sem dúvida por um estranho ardil que somos induzidos a atribuir a uma ação que será sempre eterna e invariavelmente errada os epítetos de honradez, dever e virtude".

A dificuldade surge quando consideramos de que maneira o homem - preso aos limites de sua percepção -será capaz de estabelecer um relacionamento vertical com as verdades absolutas que constituem a moral ideal. Obviamente, o dever só pode exigir que façamos o bem dentro dos limites da nossa capacidade. Por outro lado, nem a incapacidade nem a ignorância podem justificar um ato injusto, nem torná-lo justo. E assim, embora os homens não possam pretender a virtude absoluta, devem esforçar-se para criar "disposições virtuosas". Tais disposições não podem ser impostas: é preciso que cada homem as cultive dentro de si mesmo, pelo exercício incontrolado de seu juízo pessoal e pela aceitação rígida daquilo que lhe for ditado por sua consciência.

Se insistimos na autonomia do juízo pessoal estaremos seguindo o caminho dos dissidentes radicais, concluindo pela igualdade moral entre os homens. Pois, mesmo que sejam diferentes física ou mentalmente - embora Godwin acredite que essas diferenças são exageradas -, moralmente todos os homens são iguais, graças à sua independência intrínseca. É preciso que a justiça seja aplicada em igual medida e que todos recebam as mesmas oportunidades e o mesmo estímulo, sem discriminações.

O homem tem deveres para com a verdade e a moral, que é um dos aspectos da verdade. Mas terá ele direitos? Nenhum homem tem o direito de fazer algo que não seja virtuoso, nem de dizer nada que não seja verdadeiro. Na verdade, o que ele possui não são direitos, mas a pretensão de exigir a ajuda de seu semelhante, sob condições de justiça recíproca. Muitas das coisas geralmente vistas como direitos deveriam ser reivindicadas não porque o homem tenha realmente direito a elas, mas porque são imprescindíveis à obtenção da verdade moral.

A sociedade e o governo não têm nem exigências nem direitos. Existem apenas para a conveniência dos indivíduos. Aqui, Godwin repete a eterna confusão entre justiça e as leis criadas pelo homem. A primeira - diz ele - baseada em verdades éticas imutáveis; a segunda, nas decisões falíveis de instituições políticas. E preciso que o homem chegue ao que é certo através da sua própria compreensão e, aqui, serão as evidências e não a autoridade que deverão guiá-lo. A partir desse raciocínio, concluímos que o governo não tem qualquer direito a exigir nossa obediência. Exercida de forma independente na busca da justiça, a razão deveria ser a única a ditar nossa conduta. Se todos os homens ouvissem a sua voz, a sociedade seria harmônica e natural.

Podemos admitir que no atual estágio de imperfeição em que se encontra o julgamento humano, nem sempre é possível aplicar tais princípios. Crimes ocorrem e, embora todo castigo seja, por natureza, injusto, a repressão pode tornar-se inevitável. Entretanto, os homens são o que são -insiste Godwin - por culpa do ambiente que os formou. É necessário abolir as causas sociais que tornam a repressão uma necessidade. "Aquele que conseguir conciliar uma liberdade total a esse respeito com os interesses da sociedade como um todo, deve ao mesmo tempo propor os meios capazes de acabar com o egoísmo e com o vício."

Ao considerar a questão da necessidade de repressão, Godwin pergunta como seria possível colocar o bem comum acima do julgamento individual, sempre que isso se tornasse necessário, o que o leva - por sua vez - a "determinar as origens do governo político", começando pelas três hipóteses comumente apresentadas.

Hobbes, Locke e Rousseau - Filosofos "Contratualistas", cuja ideias foram recusadas por Godwin como base para justiça política.

Godwin rejeita as duas primeiras - que o governo teria origem no direito da força e/ou no direito divino, por considerar que ambas se opõem ao conceito de justiça imutável. A terceira hipótese seria a do contrato social, criada por Locke e Rousseau e geralmente aceita pelos radicais do século XVIII. Godwin discorda totalmente dos homens do seu tempo, antecipando os anarquistas do século XIX, quando não considera o contrato social como base para a justiça política. Tal contrato procura ligar uma geração às promessas feitas pelas gerações anteriores. Nega a cada indivíduo o dever de exercer seu julgamento individual sobre o que é certo e errado. Baseia-se na falácia de que devemos cumprir nossas promessas, quando a verdade é que jamais deveríamos fazer promessas, mas realizar atos e apenas porque são justos.

Godwin apressa-se a acrescentar que a ênfase no dever do julgamento individual não exclui a necessidade da ação comum. Na verdade, sempre que se tornar necessário adotar medidas para o bem comum, estas deverão ser discutidas pelo grupo, já que há uma grande semelhança entre o exercício do juízo individual e as decisões tomadas em comum de maneira correta. Ambas são "meios de descobrir o que é certo e errado e de comparar determinadas proposições com os padrões da eterna verdade". Mas não seriam mais do que isso e nem o indivíduo nem o organismo deliberativo está autorizado a criar leis. A única lei justa é a lei da razão. "Suas decisões são irrevogáveis e uniformes." As funções da sociedade não incluem a criação de leis mas sua interpretação: "ela não pode determinar nada, apenas confirmar o que já foi determinado pela própria natureza das coisas..." Assim, a autoridade da comunidade tem caráter estritamente executivo, limitando-se à defesa pública da justiça. Onde ela assegurar tal coisa, será dever de todo cidadão razoavelmente sensato apoiá-la; onde não puder fazê-lo, todo cidadão sensato deverá resistir às suas decisões.

Com a ideia de resistência, chegamos ao início da longa controvérsia anarquista sobre meios e fins. Como Tolstoi e - até certo ponto - Proudhon, Godwin também figura entre aqueles que colocam a persuasão moral e a resistência passiva acima da resistência ativa e violenta. Embora não chegue a repudiá-la, Godwin aconselha cautela no seu uso, pois a força não substitui a razão e o fato de que seja utilizada por indivíduos em busca de justiça não a torna melhor. Jamais deveria ser empregada sem alguma possibilidade de sucesso e, mesmo assim, "apenas onde não for possível ganhar tempo ou quando ganhar tempo trouxer consequências indubitavelmente fatais". A violência seria então o último e desesperado recurso dos homens justos.

A forma apropriada de resistência, que deveria ser tentada em todas as circunstâncias, seria a difusão da verdade, "a censura explícita a todas as decisões que eu perceba serem contrárias aos verdadeiros interesses da humanidade"; usada com sinceridade e persistência, a razão conseguirá tudo aquilo que a violência tenta obter com poucas chances de sucesso.

Mas é preciso que a persuasão seja sempre, tanto quanto possível, direta e individual. Godwin não confia nas associações políticas que procuram persuadir não pela propagação da verdade, mas pela força dos números. As únicas formas de associações que ele admite são aquelas criadas em situações de emergência para resistir aos ataques feitos à liberdade, e mesmo essas deveriam ser extintas tão logo deixassem de ser necessárias, para que não se transformassem em instituições. Godwin sugere que sejam formados grupos informais de discussão, integrados por pessoas interessadas na busca da verdade. Tais grupos poderiam eventualmente aglutinar-se num movimento universal, contribuindo poderosamente para o desenvolvimento dos indivíduos e a melhoria das instituições políticas. Mas é preciso evitar qualquer tentativa de criar uma uniformidade de pensamento nesses grupos. "Os seres humanos devem reunir-se não para impor, mas para questionar. A verdade dispensa o auxílio de multidões comandadas." Dessa maneira, as transformações sociais poderão ser graduais e tranquilas. Mas isso não significa, necessariamente, que a "revolução está infinitamente distante". O domínio da verdade não chega com aparato e seu aparecimento pode produzir grandes resultados ali onde são menos esperados.

Essa crença no poder da razão é quase um privilégio do século em que Godwin viveu. Encontraremos bem poucos anarquistas do século XIX que ainda confiam tanto nela. Mas, ao opor-se à formação de partidos políticos altamente organizados e insistir nos pequenos grupos informais integrando-se naturalmente a um movimento mais amplo, Godwin esboçava o primeiro plano dos modelos de organização anarquista que surgiriam mais tarde.

Tendo assentado as bases morais de seu raciocínio, Godwin passa a discutir o que chama de "detalhes práticos da instituição política" e, aqui, aborda - um de cada vez -os quatro aspectos da vida política: a administração geral, ou governo; o ensino; crime e direito; e a regulamentação da propriedade. Essa discussão sobre o governo começa com uma declaração de intransigente oposição: "Acima de tudo, não podemos esquecer que o governo é um mal, uma usurpação do juízo pessoal e da consciência individual da humanidade; e, embora possamos ser obrigados a admiti-lo como um mal necessário no momento, cumpre-nos - como amigos da razão e da espécie humana - admitir o mínimo possível dele e observar cuidadosamente se, como consequência do esclarecimento gradual da mente humana, até esse mínimo não deva ser diminuído para o futuro".

Assim, ao examinar as várias formas de governo que reconhece - monarquia, aristocracia e democracia -, Godwin não está buscando o bem maior, mas o mal menor. Suas objeções à monarquia e à aristocracia não são muito diferentes das críticas feitas por outros filósofos do século XVIII a essas formas de governo. E quando discute a democracia que ele se mostra original e caracteristicamente anarquista.


A democracia é, sem dúvida, a forma de governo sob a qual teremos melhores perspectivas de chegar a alguma coisa melhor e, da forma como Godwin a apresenta em sua definição ideal, ela já traria em si as sementes de uma sociedade melhor. A democracia "é um sistema de governo em que cada membro da sociedade é considerado apenas um homem e nada mais. No que se refere à regulação - se é que podemos chamar assim aquilo que não é mais do que o reconhecimento do mais simples de todos os princípios -, todo homem é considerado igual. Na melhor das hipóteses, a história registra apenas formas que se aproximam desse ideal, mas mesmo as democracias mais imperfeitas e turbulentas foram infinitamente superiores às monarquias e aristocracias.

"A democracia devolve ao homem a consciência de seu próprio valor, ensina-o a remover a autoridade e a opressão e a ouvir apenas os ditames da razão. Confere-lhe a confiança necessária para que trate outros homens como seu semelhante e leva-o a considerá-los não como inimigos contra os quais deva manter-se sempre em guarda, mas como irmãos a quem cabe ajudar."

Entretanto, até o momento, a democracia jamais conseguiu atingir uma situação de verdadeira justiça social. Esse fracasso, segundo Godwin, deve-se em parte à falta de sensibilidade para entender o justo poder da verdade e o valor da sinceridade. É por essa razão que a democracia procura apoiar-se em formas institucionais e não aceita, com confiança godwiniana, a ideia de que "a competição entre verdade e mentira é por si só de tal modo desigual, que essa última não tem necessidade de recorrer ao apoio de qualquer aliado político".

Por isso, ainda persistem não apenas as invenções da religião, como os mitos políticos, dividindo os homens entre uma elite esclarecida e uma casta ignorante e submissa, com todas as implicações que isso traz. Aqui Godwin difere bastante de Platão e da sua teoria da "mentira nobre": "Por que dividir os homens em duas castas - pergunta ele -, uma das quais deve pensar e raciocinar pelas duas, enquanto a outra aceita, em confiança, as conclusões a que chegaram seus superiores? Tal distinção não tem bases naturais, pois, na verdade, não existem no homem essas diferenças intrínsecas que ela parece pressupor. As razões que nos levarão à certeza de que a virtude é melhor do que o vício não são complicadas nem abstratas e, quanto menos sofrerem a leviana interferência das instituições políticas, melhor serão entendidas e aprovadas por cada homem".

Voltando sua atenção para o funcionamento do governo democrático, Godwin defende a simplificação e a descentralização de todas as formas de administração. Grandes estados complexos e centralizados são nocivos e desnecessários ao bem da humanidade. A medida que estes forem desaparecendo, deverão ser substituídos por formas locais de administração nas quais as desvantagens do governo possam ser imediatamente atenuadas pela redução da cobiça.

"Sobriedade e justiça são as características óbvias de um círculo limitado." Esse tipo de localismo esclarecido não levaria, segundo Godwin, a um paroquialismo acanhado, mas, ao contrário, transformaria o mundo numa grande república, na qual os homens poderiam transitar e discutir livremente, sem os obstáculos impostos pelas fronteiras nacionais.

Nessas unidades locais da sociedade - as "paróquias", como Godwin chamava os antepassados das "comunas" anarquistas do futuro - as leis quase não seriam necessárias; toda a comunidade participaria, tanto quanto possível, na administração pública, e os funcionários públicos - quando existissem - limitar-se-iam a fornecer informações e ocupar-se dos detalhes práticos. A única organização realmente necessária seria um júri para examinar as ofensas contra a justiça e arbitrar as controvérsias.

Em situações especiais de emergência, seria também necessário ir além das paróquias, convocando uma assembleia geral. Mas Godwin vê um grande perigo nessa espécie de instrumento e, quando fala nele, antecipa o tom anti-parlamentar característico da tradição anarquista. Nas melhores circunstâncias, as assembleias apresentam grandes desvantagens. Suas ações baseiam-se na unanimidade fictícia das decisões majoritárias. Ainda mais sinistra é a verdadeira unanimidade que surge quando os delegados, agrupados em partidos, aceitam o cerceamento da liberdade de pensamento individual. Quanto à prática do voto, Godwin declara com grande indignação moral que "decidir sobre a verdade pela soma de números" é um "insulto intolerável à justiça e à razão". 

Por todos esses motivos, as assembleias nacionais devem ser usadas com "tanta moderação quanto for possível", mesmo quando necessárias.

Nos primeiros tempos dessa democracia radical imaginada por Godwin, tanto as assembleias quanto os júris talvez tenham de emitir ordens. Mas a necessidade de utilizar a força não tem origem na própria natureza do homem, e sim nas instituições pelas quais já foi corrompido. A medida que tais instituições forem desaparecendo, o homem terá atingido um estágio de desenvolvimento tal que será necessário apenas solicitar que se abstenha de agir de modo a prejudicar seus semelhantes. E chegaremos finalmente a uma sociedade onde a sabedoria poderia ser transmitida sem a intervenção de qualquer instituição, uma sociedade de seres morais, vivendo relacionamentos justos - ou, como poderíamos dizer, usando a linguagem moderna, uma sociedade de anarquia pura.

Tudo isso irá depender da nossa atitude em relação à educação, e é esse aspecto da vida política que Godwin passa a abordar. Ele começa com uma discussão sobre como deve ser conduzido o processo vital de formar opiniões justas. Pela sua própria natureza, a sociedade não está qualificada para exercer essas funções, pois seus atos são condicionados pelos homens que a compõem, tanto os pecadores quanto os virtuosos, tanto os justos quanto os injustos, não tendo portanto nenhum direito a pretender a superioridade moral. A única vantagem da sociedade está na sua autoridade. Mas nenhum homem poderá tornar-se virtuoso apenas porque lhe ordenamos que o seja e, ao usar a força, nós o estaremos prejudicando, inibindo o relacionamento sincero entre os seres humanos e limitando a liberdade.

Godwin afirma que, sob todos esses aspectos, o pequeno grupo social leva vantagem sobre a instituição política mais ampla.

Em círculos desse tipo, diz ele, "a opinião seria suficiente"; o exame de todos os homens sobre a conduta de seus semelhantes, quando não prejudicado por qualquer capricho, constituiria uma forma irresistível de censura. Mas a força dessa censura dependeria da liberdade com que fosse feita, seguindo não as imposições categóricas da lei, mas as decisões espontâneas da inteligência. Nem mesmo a convicção com que Godwin afirmava que esse processo seria livre e espontâneo consegue apagar inteiramente a desagradável visão de um futuro onde a imprecação e a censura mútuas estariam na ordem do dia e onde a opinião pública reinaria absoluta. Talvez essa passagem seja um reflexo da influência que uma infância puritana exerceu sobre a mente de Godwin; uma infância em que suas próprias ações eram objeto de tão intensa censura - sem que entretanto sofresse qualquer castigo físico -, que certa vez foi repreendido pelo pai por ter acariciado um gato no domingo. Mas a imagem que ele criou volta a nossa mente com inquietante frequência, à medida que avançamos no estudo da história anarquista.

Detalhe da ilustração do livro "As viagens de Gulliver" , de Jonathan Swift, da editora Thomas Nelson and Sons (1883)

A esse respeito, George Orwell escreveu um ensaio sobre Swift (um escritor que, a propósito, Godwin admirava bastante), no qual observa que na sociedade anarquista dos Hoynhnms, das Viagens de Gulliver, a "advertência" tinha a mesma força que tem a coerção em outras sociedades. Continua Orwell: "Isso ilustra bem a tendência totalitária implícita na visão anarquista ou pacifista da sociedade. Numa sociedade onde não existe lei e, teoricamente, não existe coerção, o único árbitro do comportamento é a opinião pública. Mas, pela ânsia de conformismo que existe em todos os animais gregários, a opinião pública é menos tolerante do que qualquer sistema de leis. Quando os seres humanos são governados pelo 'não', o indivíduo ainda consegue agir com um certo grau de originalidade, mas quando não são supostamente governados pelo 'amor' e pela 'razão', vivem sob contínua pressão que os obriga a portar-se e pensar exatamente como todo o mundo".

 


Continua...

Texto: George Woodcock no livro História das ideias e movimentos anarquistas - Vol l

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