O valor sintrópico do capim - adeus herbicida
Na primeira parte
desse artigo, falamos um pouco sobre uma outra maneira de olhar para o
capim e contamos o caso do capim gilete na Amazônia. Dessa vez queremos
compartilhar com vocês outros três casos reais em Agricultura Sintrópica
que tivemos o privilégio de acompanhar.
Sistema com capim entre as linhas de eucalipto, banana, cítricos e manga Ernst implementou na Fazenda da Toca, em 2015 |
O capim cortado e organizado em uma leira dupla côncava no centro elimina a necessidade de herbicidas ou controle de mato nas linhas das árvores (Fazenda São Sebastião, RJ) |
Existem, no entanto, os gargalos tecnológicos. Não há no mercado uma
máquina que faça o corte e organize o capim em apenas uma operação e
que, ainda por cima, seja leve o suficiente para não compactar o solo
nem amassar as touceiras. As roçadeiras comuns não fazem um corte limpo,
sem o qual não há uma boa rebrota. Elas normalmente fazem o contrário,
estilhaçam a planta. As que se saem melhor são as ceifadeiras. Estas
fazem um corte limpo, mas não resolvem a operação do enleiramento. Ernst
sonha em desenvolver uma máquina com duas barras de corte. Um na acima
do outro. O primeiro cortaria o capim e o enleiraria na lateral por meio
de uma cinta ou esteira. O segundo, uns 10 ou 15 cm abaixo, serviria
para fornecer biomassa para o próprio capim. Enquanto o mercado não
disponibiliza a máquina perfeita, alguns fazendeiros inovadores têm
feito testes importantes que apontam a tecnologia para uma nova direção.
Quase todos os implementos disponíveis para cortar mato fazem esse tipo de corte, que compromete a rebrota da planta. |
Um corte limpo permitiu que esse tipo de Panicum crescesse 20 cm em apenas um dia, contra os 5 cm do método acima. |
Cultivo de banana em larga scala - Martinica
Área experimental com capim entre as linhas de árvores + banana (foto: Patrick Aubery) |
O cultivo industrial de banana sofre hoje com desafios instransponíveis. Seja por novas doenças, esgotamento e erosão dos solos ou falta de mão de obra, fazendeiros dos maiores centros produtores de banana vislumbram um futuro sombrio. Saiba mais sobre o "apocalipse da banana" aqui, aqui, aqui e aqui.
Em
uma fazenda de 400 hectares na Martinica - pequena ilha francesa nos
trópicos, de onde sai parte da produção de banana que alimenta o mercado
europeu - um empreendimento de família conduziu o cultivo de banana
para outro rumo. Há mais de uma década, a fazenda sofria perdas de solo
por erosão depois de tantos ciclos de cultivo convencional de
cana-de-açúcar (a ilha é famosa pelo rum) e banana. O solo estava
desestruturado e era anualmente lavado morro abaixo pelas fortes chuvas
que fustigam o Caribe nas temporadas de furacões. Como medida
preventiva, Bertrand, o pai, inovou ao plantar por anos o capim
Brachiaria para conter a perda de solo. A ação foi um sucesso. A
presença da espécie perene não apenas segurou a terra como também
melhorou o solo de forma geral, o que fez com que diminuíssem o uso de
insumos e defensivos. Em 2016, Patrick, o filho, convidou o Ernst para
uma consultoria, e desde então estivemos lá duas vezes para ver o
desenvolvimento desse sistema inovador.
Acima, o primeiro implemento que usaram. Embora seja uma solução
interessante, o implemento requer um trator muito pesado, que danifica a
rebrota da planta.
O "brinquedo chinês" é uma solução leve, mas não consegue cortar touceiras mais velhas e fibrosas.
A solução atual (acima) faz um balanço entre as duas primeiras. Enquanto
não temos um máquina desenhada especificamente para isso, fazendeiros
fazem o melhor que podem com o que há disponível no mercado.
Patrick Aubery e Ernst Götsch plantando schizolobium parahyba na nova área experimental |
Felipe, Bertrand, Romain e Ernst |
Workshop na nova área |
Romain nos mostrando seu quintal biodiverso |
Ter capim crescendo com hortaliças diminui a necessidade de irrigação e favorece o enraizamento das plantas. |
Mais recentemente, Ernst trouxe o uso do capim também para a produção de
hortaliças. Sua decisão de plantar o mombaça nos canteiros de horta,
segundo ele, aumentaria a fotossíntese total da área e evitaria o
crescimento de ervas espontâneas indesejadas. O capim preencheria todos
os espaços não ocupados pelas hortaliças, e sua transpiração criaria um
microclima mais úmido na superfície do canteiro, o que reduziria a
necessidade de irrigação. Assim como nos exemplos acima, o manejo é
feito pelo corte limpo e incorporação das folhas na superfície dos
canteiros. Sem espaço para crescerem, as ervas indesejadas teriam poucas
chances de prosperar. Outra vantagem que observamos aqui em Casimiro de
Abreu (onde o Ernst realizou os primeiros testes desse modelo), é que o
capim estimula o enraizamento das hortaliças. Fizemos o teste, a
diferença é impressionante. E não para por aí.
Vista aérea de uma faixa de hortaliças com capim. Depois da colheita, o agricultor herda um campo de produção de biomassa (Fazenda São Sebastião, RJ, 2017) |
Além de tudo isso, existe um benefício de entendimento mais sutil.
Arrancar mato (um dos grandes gargalos da olericultura orgânica) não só é
caro, como segue uma lógica entrópica, que segura a sucessão natural. A
capina manual, embora menos agressiva que a química, está longe de ser
inocente. Tirar o “mato” pela raíz promove pequenas feridas no solo e
expõe sua camada mais fértil e sensível ao sol. Parte da microvida do
solo que começava a se acumular na rizosfera morrem instantaneamente, O
uso do capim, embora também trabalhoso, é sintrópico. Ao invés de
capina, faz-se poda, que alimenta e protege a solo. Quando terminado o
ciclo da horta, o canteiro passa a cumprir outro propósito. Ao invés de
uma faixa de solo nu, cansado e revirado, o agricultor herda uma usina
de adubo pronta para fornecer alimento e proteção às linhas das árvores
ao redor.
As linhas de árvores adjacentes foram pulsadas para que pudéssemos enriquecer o sistema (Fazenda São Sebastião, RJ, 2017) |
Vale a pena, também, lembrar que grande parte das áreas que são hoje
dominadas por gramíneas foram, um dia, complexas florestas que nós
simplificamos. Nos quase 80% do planeta que desmatamos nos últimos
10.000 anos, perdemos concentração de matéria e energia, perdemos
diferenciação e perdemos complexidade. Se considerarmos o deserto e a
floresta como extremos, nossa agricultura sempre operou no contrafluxo
do planeta, em processos degradativos que se iniciam na floresta e
terminam no deserto. As evoluções tecnológicas mais recentes permitiram
um aumento inédito na produtividade, mas ainda não inverteram nossa
trajetória no sentido da entropia. A cada ano, safra após safra, os
solos do planeta empobrecem ou são erodidos. Mesmo com as
super-colheitas, ainda estamos dando um passo para trás – da floresta ao
deserto. Não fossem os aportes externos (de fontes não renováveis),
poucos solos no mundo ainda produziriam alimentos o suficiente para
sustentar animais de porte grande.
Uma fábrica de fertilizante vivo que protege o solo e nutre as plantas (Fazenda São Sebastião, 2017) |
O planeta visivelmente funciona de forma diferente – do deserto para a
floresta. Sem nossa presença, mesmo a terra mais degradada voltará a ser
fértil um dia, passando pelo lento processo da sucessão natural. A
sintropia aplicada aos cultivos agrícolas propõe uma nova forma de
interpretar a agricultura, que favorece e impulsiona os processos de
vida, sincronizando a produção agrícola com o fluxo inevitável do
planeta. Por essa razão, nós imploramos aos movimentos de agricultura
orgânica que fomentem a adoção de espécies perenes e sucessão natural
como diretrizes principais se quisermos genuinamente ser regenerativos e
sustentáveis. Ambientalmente, não podemos mais custear dietas baseadas
em cultivos anuais e bianuais. Isso não significa que devemos abandonar o
cultivo de alface ou feijão. O que precisamos é entender que essas
espécies pertencem a um estágio inicial de um longo ciclo florestal, e
que emergem após a criação de uma clareira. Deveríamos ser proibidos de
cultivar apenas espécies de ciclo curto. Tal como um organismo saudável,
uma floresta precisa de todas as suas "células" para completar seu
ciclo, das ervas de ciclo curto às árvores centenárias (que por sinal,
produzem parte dos alimentos mais nobres que conhecemos).
O capim é apenas um dos exemplos de como essa perspectiva se manifesta
na prática. Não é ele que empobrece o solo. Afirmar isso é errado,
injusto e sustenta nossa guerra contra a vida. Muito pelo contrário. Ele
nos dá uma chance de redenção. Bem manejado, é o capital natural que
temos disponível para levar o plantio adiante, acelerando a sucessão
natural em direção à sistemas mais complexos – estratégia natural do
planeta (que cria fertilidade sem adubos externos). A agricultura
moderna desperdiça o potencial dessa e de muitas outras espécies. O
manejo inteligente dessas plantas depende de uma mudança de ponto de
vista e tecnologia. Xingar não resolve, combater piora. A ocorrência
dele é uma consequência, e não uma causa. É por tudo isso que na
agricultura sintrópica o uso de herbicidas nunca precisou ser uma
proibição ou um incentivo. Nós desenhamos nosso sistema de forma a não
ter que lidar com essa opção. Herbicidas são dispensáveis simplesmente
porque não fazem sentido. É uma ilusão achar que conseguiremos controlar
o uso de agrotóxicos com regulações e proibições. O que precisamos é
superar nossa necessidade de usá-los. Como o Ernst diz, “eu planto meu
mato, e eu manejo meu mato”.
Por Felipe Pasini
Fonte https://agendagotsch.com/pt/the-syntropic-value-of-grass-goodbye-herbicide/
Comentários
Postar um comentário